Mogo Não Socializa #10
Uma newsletter sobre gibis, adaptações de gibis e o homem que estava na Amazônia com minha mãe pesquisando aranhas logo antes dela morrer
Algumas observações sobre o fascinante acidente de lambreta em formato de filme que é Madame Teia
E sem saber que era impossível, a Sony foi lá e fez. Com um orçamento próximo aos 100 milhões de dólares e até agora uma bilheteria na casa dos 50, “Madame Teia” teve a pior abertura de qualquer filme do "Sonyverso" - o universo de filmes do Homem-Aranha sem o Homem-Aranha produzidos pela Sony - e foi o primeiro filme baseado em personagens da Marvel a não liderar a bilheteria na sua semana de lançamento desde o "Quarteto Fantástico" "realista" cujo diretor praticamente nunca mais conseguiu emprego, além de estar sendo absolutamente destroçado pela crítica - Isabela Boscov chegou a declarar que se tinham tanto dinheiro sobrando era melhor doar pra caridade.
Mas o que o Sonyverso - e especialmente Madame Teia - tem de tão especial para estabelecer novos padrões de fracasso até mesmo num ambiente onde os filmes de super-heróis já vem conseguindo fracassar bastante? Por estar vivendo um momento pessoal complicado e não gostar muito de mim mesmo, fui ao cinema e tirei algumas conclusões.
Sonyverso: Origens
Pra quem não estão tão familiarizado com a divisão dos direitos de adaptação do personagem Homem-Aranha para o cinema - e por que você estaria? - a situação é a seguinte. Em 1999, com a Marvel absolutamente na lona, pedindo dinheiro pra parente e vendendo o videocassete da avó pra comprar mais adamantium pro Wolverine, a Sony comprou os direitos do Homem-Aranha pro cinema por cerca de 7 milhões de dólares, que hoje deve ser o valor que a Zendaya cobra pra gravar um vídeo te desejando feliz aniversário - duração 30 segundos.
A Sony fez então a primeira trilogia do Sam Raimi, em que o protagonista era Tobey Maguire e os lucros foram bilionários, até que o terceiro filme não deu tão certo e eles decidiram realizar o chamado reboot. Veio Mark Webb para dirigir, veio Andrew Garfield como protagonista, e a coisa não foi tão bem, tanto que nem chegamos a ter uma trilogia, dois filmes foi o bastante, e perdemos a chance de ver Paul Giamatti sendo o vilão mais irritado e ao mesmo tempo deprimido que o Homem-Aranha já teve.
Ou seja, tínhamos filmes do Homem-Aranha com retornos financeiros cada vez menores e um universo Marvel que, mesmo sem alguns dos seus principais personagens nos gibis - não só o Cabeça de Teia, mas também os X-Men e o Quarteto Fantástico - parecia apenas crescer. Foi então que a ganância se uniu com a vontade de ganhar dinheiro e, através de um acordo especial, o Homem-Aranha foi parar no MCU, num contrato que permitia que a Marvel utilizasse o personagem pra contar suas histórias e a Sony recebesse uma polpuda fatia dos lucrativos filmes onde ele aparecia, num famoso ganha-ganha que deixava felizes também os fãs, que agora poderiam ver seus personagens favoritos interagindo.
Mas o problema é que a Sony não havia comprado apenas os direitos do Homem-Aranha, mas também os direitos de vários personagens adjacentes e relacionados ao Homem-Aranha. Vilões do Homem-Aranha? Tudo da Sony. Aliados do Homem-Aranha? Não mexe que a Sony comprou. Galerinha bacana do Clarim Diário? Sonystas demais. E como numa megacorporação midiática nada se perde, tudo se transforma, os executivos da empresa japonesa, possivelmente após consumirem grandes quantidades de cocaína, começaram a pensar em maneiras de adaptar e capitalizar em cima dessas "propriedades intelectuais" que estavam ali em cima da mesa, de bobeira, sem fazer nada.
Foda é que no começo “deu certo”
Uma escolha óbvia, quando você pensa em "filmes solo de personagens do universo do Homem-Aranha" claramente é "Venom". Um vilão que se tornou anti-herói, Eddie Brock tem sim sua origem intimamente ligada ao Homem-Aranha - afinal, ele culpa Peter Parker pelo seu fracasso profissional e encontra o simbionte exatamente após o alienígena ser rejeitado pelo herói - mas com algumas forçadas de barra e uma atuação absolutamente alucinada de Tom Hardy, a Sony conseguiu uma bilheteria de mais de 800 milhões de dólares num filme de vilão do Homem-Aranha. E tal qual uma pessoa que achou 50 reais no bolso de uma calça e agora faz o orçamento do mês pensando que se tem 10 calças então tem 500 reais garantidos, o estúdio confundiu sorte com projeto e pensou "temos uma mina de ouro".
O resultado? Primeiro "Venom 2", que já rendeu 300 milhões de dólares a menos e, para executivos que não estivessem absolutamente loucos de ganância e MD, poderia sinalizar um desgaste da fórmula. Logo depois “Morbius”, que mal passou dos 160 milhões nas bilheterias americanas, fez Isabela Boscov desconfiar que Jared Harris tinha dívidas de jogo, e ficou mais famoso pelos memes do que pela sua qualidade. E por fim, “Madame Teia”, que ofereceu ainda menos retorno e cuja divulgação consiste em Dakota Johnson dando entrevistas cada vez mais erráticas em que ela parece estar menos interessada em falar do filme e mais em estudar reações de jornalistas para um PHD em psicologia que ela está fazendo por fora.
Mas qual é o problema do Sonyverso?
Ainda que a resposta óbvia seja "a falta de um Homem-Aranha", a verdade é que o problema é menos não termos um Peter Parker nesse universo - ou nesses universos, já que Madame Teia parece desconectado de Venom, que não sabemos bem o quanto é conectado com Morbius - e mais a maneira esquisita como a Sony lida com o fato de que não temos um Peter Parker nesse universo.
Pegue por exemplo, “Madame Teia”. Já é uma leve forçada em termos de personagem secundária que nunca teve título próprio mas ganhou filme solo? Sim. Um tanto quanto ousado centrar a trama em alguém que, normalmente, no universo do Homem-Aranha, funciona mais como ferramenta narrativa e preview humano do que protagonista? Também. Mas não é nem aí que tá o problema, já que não existe personagem que não possa brilhar se você tiver o roteiro certo. O problema vem depois.
Afinal, no filme somos apresentados a Cassandra Webb, uma paramédica que trabalha ao lado de seu parceiro, Ben Parker. Mas não apenas Ben Parker, mas um Ben Parker, cuja cunhada de chama Mary Parker e está grávida, prestes a dar a luz. Uma clara referência ao Homem-Aranha, já que Ben Parker é o nome do tio que vai ajudar a cuidar de Peter após seus pais, Mary e Richard Parker falecerem. Certo? Certo???? Nem tanto. Afinal, o filme realiza esforços imensos para não apenas jamais falar o nome que planejam dar ao bebê (Durval Parker? Edmundo Parker? Mangabeira Unger Parker???) como também não revelar quem é a nova namorada misteriosa de Ben, que é citada só uma vez, mas que ele acredita ser “a pessoa certa” (obviamente falar que ela se chama "May" seria se comprometer demais, talvez nesse universo ela se chame Chevrolet Chevette SL 92).
E é esse estranho jogo de avanços e recuos, de falsas promessas e referências perdidas, que acaba tornando os filmes da Sony desnecessariamente confusos e frustrantes, já que eles não apenas não estabelecem um universo totalmente sem Homem-Aranha, para que os personagens possam ter vida própria, como não insere realmente o Homem-Aranha nesse universo, ficando sempre numa espécie constrangedora de meio do caminho, como se a própria Sony não soubesse exatamente o que ela pode fazer ou não com esses personagens, deixando roteiristas e diretores absolutamente perdidos - a própria Dakota Johnson afirmou que na primeira versão do filme o objetivo do vilão era impedir o nascimento de Peter Parker, algo que não é nem remotamente parte da trama do filme que chegou aos cinemas.
Somando a isso alguns nomes bem complicados por trás das câmeras (Madame Teia foi escrito pela mesma dupla de roteiristas de “Morbius”, o filme onde precisavam levar Jared Leto ao banheiro; “Power Rangers”, o reboot que ninguém lembra; e “Deuses do Egito”, o filme onde todos os deuses do Egito era brancos; além de serem responsáveis por estragar uma das grandes premissas da nossa era, que é "e se Dominic Toretto caçasse bruxas?)”, você tem um cenário onde executivos gananciosos e desorientados contratam roteiristas de qualidade duvidosa para produzir filmes cuja trama vai sofrer constantes revisões pelo simples fato de que ninguém ali sabe exatamente o quanto de Homem-Aranha pode colocar nesses filmes do Homem-Aranha sem Homem-Aranha.
Quando essas produções altamente genéricas são desovadas num mercado já saturado de filmes com a mesma temática, onde nem mesmo a Marvel parece estar segura, você tem essa onda perfeita, que é um filme profundamente problemático encontrando um público que está um tanto quanto de saco cheio. Eis então, “Madame Teia”, uma obra tão absurda que a única parte dela que havia chamado atenção no trailer – “He was in the Amazon with my mom when she was researching spiders right before she died” – nem mesmo aparece na versão final, já que a Sony esteve constantemente mudando e editando e cortando o filme.
Mas tudo bem, não vamos desanimar, está vindo aí “Kraven”, um filme solo do vilão do Homem-Aranha famoso por ser um caçador impiedoso, onde ele aparentemente é um protetor dos animais e ganha poderes através do sangue de um leão. Dos mesmos roteiristas de “Uncharted” e “Homens de Preto – Internacional”. O que pode dar errado, certo?
Mais de 100 anos de cinema e a galera ainda faz dessas...